domingo, 19 de março de 2017

UFRJ- 2009 - com gabarito

“A loucura (...), objeto de meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente.”

(ASSIS, Machado de. O Alienista. In: Obra Completa. Vol. II, Conto e Teatro. Org. por Afrânio Coutinho, 4ª ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1979. p. 260)

TEXTO I

Um começo muito louco

“Ora, a mente é dita sã”, escreveu Erasmo em O elogio da loucura (1509), “desde que controle adequadamente todos os órgãos do corpo”. Embora escrita quase 500 anos atrás num tratado em defesa do cristianismo, essa
frase expressa mais ou menos nossas suposições modernas sobre a sanidade. Em primeiro lugar, que a sanidade é uma qualidade da mente, não do corpo (não descrevemos os corpos das pessoas como sãos ou insanos). Em segundo lugar, que é a função da mente sã controlar o corpo, e portanto que o corpo ficaria descontrolado — ou pelo menos fazendo coisas proibidas — se não estivesse sob a égide da mente. Em terceiro lugar, que o corpo é não só o tipo de objeto que pode ser controlado, como também o tipo de objeto que pode ser adequada ou inadequadamente controlado; portanto, o que a mente sã implica acima de tudo é adequação. E por fim, mas não menos importante, há um fator temporal envolvido. Para ter sanidade precisamos de uma mente, e precisamos de uma mente para controlar um corpo que de outro modo seria insano, mas a mente é dita sã, como dizia Erasmo, apenas “desde que” controle os órgãos do corpo. A sugestão é que a sanidade é precária, não uma condição permanente. A questão passa a ser não só se a mente sã pode controlar o corpo, mas por quanto tempo.

(PHILLIPS, Adam. Louco para ser normal. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 63)

01. Tomando por base as suposições modernas sobre a sanidade apresentadas no texto I, responda: o que é considerado primordial para que a mente seja saudável?



TEXTO II

Os diferentes

Descobriu-se na Oceania, mais precisamente na ilha de Ossevaolep, um povo primitivo, que anda de cabeça para baixo e tem vida organizada.
É aparentemente um povo feliz, de cabeça muito sólida e mãos reforçadas. Vendo tudo ao contrário, não perde tempo, entretanto, em refutar a visão normal do mundo. E o que eles dizem com os pés dá a impressão de serem coisas aladas, cheias de sabedoria.
Uma comissão de cientistas europeus e americanos estuda a linguagem desses homens e mulheres, não tendo chegado ainda a conclusões publicáveis. Alguns professores tentaram imitar esses nativos e foram recolhidos ao hospital da ilha. Os cabecences-para-baixo, como foram denominados à falta de melhor classificação, têm vida longa e desconhecem a gripe e a depressão.

(ANDRADE, Carlos Drummond de. Prosa Seleta. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003. p. 150)

02. O nome da ilha, no texto II, sugere uma sociedade inversa àquela que tem a “visão normal do mundo” (“Ossevaolep” é “pelo avesso” ao contrário).
Estabeleça o ponto de vista do povo de Ossevaolep, que anda de cabeça para baixo, em relação à “visão normal do mundo”.

03. No texto II, há diversos sintagmas nominais – construções com núcleo substantivo acompanhado ou não de termos com função adjetiva – que caracterizam o “povo primitivo”.
a) Retire do texto dois desses sintagmas.

b) A caracterização normalmente atribuída a um povo primitivo como não evoluído não se confirma no texto II.
Justifique essa afirmativa, utilizando os sintagmas escolhidos no item a.

04. No texto II, identifica-se o povo da ilha de Ossevaolep por um neologismo: cabecences-para-baixo.
a) Identifique os processos de formação de palavras utilizados para a criação desse neologismo.
b) Considerando o conhecimento que os observadores têm do povo de Ossevaolep, responda:
por que se afirma, no texto II, que o neologismo foi criado “à falta de melhor classificação”?

05. No texto I (Um começo muito louco), apresentam-se três suposições sobre a sanidade.
Relacione o conteúdo da terceira suposição ao texto II (Os diferentes), tendo em vista o estilo de vida do povo de Ossevaolep.

TEXTO III

SEGUE NESTE SONETO A MÁXIMA DE BEM VIVER QUE É ENVOLVER-SE NA CONFUSÃO DOS NÉSCIOS PARA PASSAR MELHOR A VIDA

SONETO

Carregado de mim ando no mundo,
E o grande peso embarga-me as passadas,
Que como ando por vias desusadas,
Faço o peso crescer, e vou-me ao fundo.

O remédio será seguir o imundo
Caminho, onde dos mais vejo as pisadas,
Que as bestas andam juntas mais ousadas,
Do que anda só o engenho mais profundo.

Não é fácil viver entre os insanos,
Erra, quem presumir que sabe tudo,
Se o atalho não soube dos seus danos.

O prudente varão há de ser mudo,
Que é melhor neste mundo, mar de enganos,
Ser louco c’os demais, que só, sisudo.

(MATOS, Gregório de. Poemas escolhidos. São Paulo: Cultrix, 1989. p. 253)

06. O soneto de Gregório de Matos (texto III) apresenta, em sua construção, um conflito entre o eu-lírico e o mundo.
a) Em que consiste esse conflito?

b) Qual foi a solução proposta?

07. O Barroco faz um uso particular de metáforas para concretizar abstrações. No texto III, encontram-se vocábulos cujos significados constroem imagens vinculadas à travessia do eu-lírico no mundo. Retire do texto quatro vocábulos desse campo semântico, sendo dois verbos e dois substantivos.

TEXTO IV

O ASSINALADO

Tu és o louco da imortal loucura,
o louco da loucura mais suprema.
A terra é sempre a tua negra algema,
prende-te nela a extrema Desventura.

Mas essa mesma algema de amargura,
mas essa mesma Desventura extrema
faz que tu’alma suplicando gema
e rebente em estrelas de ternura.

Tu és Poeta, o grande Assinalado
que povoas o mundo despovoado,
de belezas eternas, pouco a pouco.

Na Natureza prodigiosa e rica
toda a audácia dos nervos justifica
os teus espasmos imortais de louco!

(SOUSA, Cruz e. Poesia completa. Florianópolis:
Fundação Catarinense de Cultura, 1981. p. 135)

08. Apresente, com suas próprias palavras, o significado de loucura depreendido a partir da leitura do texto IV.

09. Para a análise e a interpretação de um texto, é fundamental a compreensão das informações transmitidas no nível das sentenças. A fim de demonstrar essa compreensão, reescreva os seguintes versos do texto IV, substituindo exclusivamente as formas pronominais por estruturas com sintagmas nominais que explicitem os referentes: “A terra é sempre a tua negra algema / prende-te nela a extrema Desventura”.

10. O título do Texto IV – O ASSINALADO – remete a uma concepção de poeta que se associa, a um só tempo, às correntes estéticas do Simbolismo e do Romantismo. Apresente essa concepção.




GABARITO

QUESTÃO 1
Para que a mente seja saudável, é primordial que haja adequação do controle da mente sobre o corpo.

QUESTÃO 2
O povo de Ossevaolep não se preocupa em ter ponto de vista em relação àqueles que teriam a visão normal do mundo.

QUESTÃO 3
a) Os seguintes sintagmas nominais caracterizam o “povo primitivo”: vida organizada; povo feliz; (povo) de cabeça muito sólida e mãos reforçadas; cabeça muito sólida; mãos reforçadas; coisas aladas; (coisas) cheias de sabedoria; vida longa; os cabecences-para-baixo.

b) Os sintagmas em (a) recebem, no texto II, conotação positiva – vinculada a felicidade, sabedoria, organização,
longevidade –, o que contrasta com a caracterização normalmente atribuída a “povo primitivo”.

QUESTÃO 4
a) Os processos de formação utilizados foram composição por justaposição e derivação sufixal.

b) Os observadores criaram um neologismo que não vai além do nível descritivo superficial porque eles não conseguiram alcançar um conhecimento aprofundado, conclusivo a respeito do povo de Ossevaolep.

QUESTÃO 5
A relação entre a terceira suposição do texto I e o estilo de vida do povo de Ossevaolep, no texto II, traduz-se da seguinte forma: o andar de cabeça para baixo é controlado com a adequação necessária para uma vida organizada e feliz.

QUESTÃO 6
a) O eu-lírico encontra-se em crise por se sentir completamente deslocado (inadequado, desajustado) em relação à coletividade, ao mundo.

b) A solução proposta é render-se ao mundo: o eu-lírico mostra que é melhor seguir mudo o caminho da coletividade do que ficar só.

QUESTÃO 7
Os vocábulos que constroem imagens vinculadas ao campo semântico de travessia são os seguintes: ando, vou(-me), seguir, andam, anda, erra (verbos); passadas, vias, caminho, pisadas, atalho (substantivos).

QUESTÃO 8
O significado de loucura no texto IV está relacionado à condição e à própria atividade do ser poeta: louco é o poeta e loucura é a poesia.

QUESTÃO 9
A terra é sempre a negra algema do poeta / a extrema Desventura prende o poeta na terra (ou na algema) ou A terra é sempre a negra algema do poeta / prende o poeta na terra (ou na algema) a extrema Desventura

QUESTÃO 10
A concepção de poeta comum às correntes estéticas do Simbolismo e do Romantismo é a de um ser iluminado, inspirado, divino, dotado da capacidade de indicar à humanidade, por intermédio da poesia, o que comumente não se percebe.



Redação

Pensar ou agir de modo distinto do da maioria das pessoas pode ser visto como algo simplesmente diferente, ou como inadequação, ou até mesmo como loucura.

Considerando a afirmativa acima e os trechos abaixo, elabore um texto dissertativo-argumentativo em que você apresente suas reflexões a respeito do olhar sobre a normalidade/anormalidade.

Dizem que sou louco
Por pensar assim
Se eu sou muito louco
Por eu ser feliz
Mais louco é quem me diz
Que não é feliz, não é feliz

(BAPTISTA, Arnaldo & LEE, Rita. “Balada do louco”. www.ritalee.com.br)

Normalidade é a habilidade para se adaptar ao mundo exterior com satisfação e para dominar a tarefa de culturação.

(MENINGER, K. In: Ballone GJ - Diagnóstico Psiquiátrico - in. PsiqWeb, Internet, disponível em www.psiqweb.med.br, revisto em 2005)

LOUCURA

A loucura é diagnosticada pelos sãos, que não se submetem a diagnóstico.

Há um limite em que a razão deixa de ser razão, e a loucura ainda é razoável.

LUCIDEZ

Somos lúcidos na medida em que perdemos a riqueza de imaginação.

(ANDRADE, Carlos Drummond de. Prosa seleta. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003. p. 928)

ORIENTAÇÕES
1. Evite copiar passagens dos fragmentos apresentados.
2. Redija seu texto em prosa, de acordo com a norma culta escrita da língua.
3. Redija um texto de 25 a 30 linhas.
4. Não se esqueça de atribuir um título a seu texto.



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