quarta-feira, 15 de março de 2017

Modernismo - parte 1

1. (Pucrj 2016)  Texto 1

Ora, daquela vez, como das outras, Fabiano ajustou o gado, arrependeu-se, enfim deixou a transação meio apalavrada e foi consultar a mulher. Sinha Vitória mandou os meninos para o barreiro, sentou-se na cozinha, concentrou-se, distribuiu no chão sementes de várias espécies, realizou somas e diminuições. No dia seguinte Fabiano voltou à cidade, mas ao fechar o negócio notou que as operações de sinha Vitória, como de costume, diferiam das do patrão. Reclamou e obteve a explicação habitual: a diferença era proveniente de juros.
Não se conformou: devia haver engano. Ele era bruto, sim senhor, via-se perfeitamente que ele era bruto, mas a mulher tinha miolo. Com certeza havia um erro no papel do branco. Não se descobriu o erro, e Fabiano perdeu os estribos. Passar a vida inteira assim no toco, entregando o que era dele de mão beijada! Estava direito aquilo? Trabalhar como negro e nunca arranjar carta de alforria!
O patrão zangou-se, repeliu a insolência, achou bom que o vaqueiro fosse procurar serviço noutra fazenda.
Aí Fabiano baixou a pancada e amunhecou. Bem, bem. Não era preciso barulho não. Se havia dito palavra à toa, pedia desculpa. Era bruto, não fora ensinado. Atrevimento não tinha, conhecia o seu lugar. Um cabra. Ia lá puxar questão com gente rica? Bruto, sim senhor, mas sabia respeitar os homens. Devia ser ignorância da mulher, provavelmente devia ser ignorância da mulher. Até estranhara as contas dela. Enfim, como não sabia ler (um bruto, sim senhor), acreditara na sua velha. Mas pedia desculpa e jurava não cair noutra.
O amo abrandou, e Fabiano saiu de costas, o chapéu varrendo o tijolo. Na porta, virando-se, enganchou as rosetas das esporas, afastou-se tropeçando, os sapatões de couro cru batendo no chão como cascos.
Foi até a esquina, parou, tomou fôlego. Não deviam tratá-lo assim. Dirigiu-se ao quadro lentamente. Diante da bodega de seu Inácio virou o rosto e fez uma curva larga. Depois que acontecera aquela miséria, temia passar ali. Sentou-se numa calçada, tirou do bolso o dinheiro, examinou-o, procurando adivinhar quanto lhe tinham furtado. Não podia dizer em voz alta que aquilo era um furto, mas era. Tomavam-lhe o gado quase de graça e ainda inventavam juro. Que juro! O que havia era safadeza.
— Ladroeira.
Nem lhe permitiam queixas. Porque reclamara, achara a coisa uma exorbitância, o branco se levantara furioso, com quatro pedras na mão. Para que tanto espalhafato?
— Hum! hum!

RAMOS, Graciliano. Vidas secas. Rio de Janeiro: Record, 1986, pp.92-94.


Texto 2

Heloísa – Dizem tanta coisa de você, Abelardo...
Abelardo I – Já sei... Os degraus do crime... que desci corajosamente. Sob o silêncio comprado dos jornais e a cegueira da justiça de minha classe! Os espectros do passado... Os homens que traí e assassinei. As mulheres que deixei. Os suicidados... O contrabando e a pilhagem... Todo o arsenal do teatro moralista dos nossos avós. Nada disso me impressiona nem impressiona mais o público... A chave milagrosa da fortuna, uma chave Yale... Jogo com ela!
Heloísa – O pânico...
Abelardo I – Por que não? O pânico do café. Com dinheiro inglês comprei café na porta das fazendas desesperadas. De posse de segredos governamentais, joguei duro e certo no café-papel! Amontoei ruínas de um lado e ouro do outro! Mas, há o trabalho construtivo, a indústria... Calculei ante a regressão parcial que a crise provocou... Descobri e incentivei a regressão, a volta à vela... sob o signo do capital americano.
Heloísa – Ficaste o Rei da Vela!
Abelardo I – Com muita honra! O Rei da Vela miserável dos agonizantes. O Rei da Vela de sebo. E da vela feudal que nos fez adormecer em criança pensando nas histórias das negras velhas... Da vela pequeno-burguesa dos oratórios e das escritas em casa... As empresas elétricas fecharam com a crise... Ninguém mais pode pagar o preço da luz... A vela voltou ao mercado pela minha mão previdente. Veja como eu produzo de todos os tamanhos e cores. (Indica o mostruário). Para o Mês de Maria das cidades caipiras, para os armazéns do interior onde se vende e se joga à noite, para a hora de estudo das crianças, para os contrabandistas no mar, mas a grande vela é a vela da agonia, aquela pequena velinha de sebo que espalhei pelo Brasil inteiro... Num país medieval como o nosso, quem se atreve a passar os umbrais da eternidade sem uma vela na mão? Herdo um tostão de cada morto nacional!
Heloísa (Sonhando) – Meu pai era o Coronel Belarmino que tinha sete fazendas, aquela casa suntuosa de Higienópolis... ações, automóveis... Duas filhas viciadas, dois filhos tarados... Ficou morando na nossa casinha da Penha e indo à missa pedir a Deus a solução que os governos não deram...
Abelardo I – Que não deram aos que não podem viver sem empréstimos.
Heloísa – Meus pais... meus tios... meus primos...
Abelardo I – Os velhos senhores da terra que tinham que dar lugar aos novos senhores da terra!
Heloísa – No entanto, todos dizem que acabou a época dos senhores e dos latifúndios...
Abelardo I – Você sabe que o meu caso prova o contrário. Ainda não tenho o número de fazendas que seu pai tinha, mas já possuo uma área cultivada maior que a que ele teve no apogeu.
Heloísa – Há dez anos... A saca de café a duzentos mil-réis!
Abelardo I – Estamos de fato num ponto crítico em que podem predominar, aparentemente e em número, as pequenas lavouras. Mas nunca como potência financeira. Dentro do capitalismo, a pequena propriedade seguirá o destino da ação isolada nas sociedades anônimas. O possuidor de uma é um mito econômico. Senhora minha noiva, a concentração do capital é um fenômeno que eu apalpo com as minhas mãos. Sob a lei da concorrência, os fortes comerão sempre os fracos. Desse modo é que desde já os latifúndios paulistas se reconstituem sob novos proprietários.

ANDRADE, Oswald de. O rei da vela. São Paulo: Editora Abril, 1976, pp.46-49.


a) Compare a visão que os personagens Fabiano e Abelardo I têm em relação ao seu lugar na sociedade, e retire dos Textos 1 e 2 uma passagem que comprove a sua resposta.
b) Indique o gênero literário predominante no texto 2, justificando com aspectos que o caracterizam.
  
2. (Pucrj 2016)  São Paulo, 15 de novembro de 1923 – Viva a República!

Tarsila, minha querida amiga:

Cuidado! fortifiquem-se bem de teorias e desculpas e coisas vistas em Paris. Quando vocês aqui chegarem, temos briga, na certa. Desde já, desafio vocês todos juntos, Tarsila, Oswald, Sérgio para uma discussão formidável. Vocês foram a Paris como burgueses. Estão épatés*. E se fizeram futuristas! hi! hi! hi! Choro de inveja. Mas é verdade que considero vocês todos uns caipiras em Paris. Vocês se parisianizaram na epiderme. Isso é horrível! Tarsila, Tarsila, volta para dentro de si mesma. Abandona o Gris e o Lhote, empresários de criticismos decrépitos e de estesias decadentes! Abandona Paris! Tarsila! Tarsila! Vem para a mata-virgem, onde não há arte negra, onde não há também arroios gentis. Há MATA VIRGEM. Criei o matavirgismo. Sou matavirgista. Disso é que o mundo, a arte, o Brasil e minha queridíssima Tarsila precisam.
Se vocês tiverem coragem venham para cá, aceitem meu desafio.
E como será lindo ver na moldura verde da mata a figura linda, renascente de Tarsila Amaral. Chegarei silencioso, confiante e te beijarei as mãos divinas.

Com abraço muito amigo do Mário.

* Épatés – palavra do francês que significa deslumbrados.

AMARAL, Aracy (org.). Correspondência Mário de Andrade & Tarsila do Amaral. São Paulo: Editora da USP/IEB, 2001, pp. 78-80.


a) A carta escrita por Mário de Andrade a Tarsila do Amaral aborda importantes questões que fomentaram o debate político e estético entre os artistas da primeira geração modernista no Brasil. Indique dois aspectos presentes no texto que reiteram o que foi afirmado acima.
b) Determine dois procedimentos linguísticos, comprovados com exemplos retirados da carta, que evidenciam o espírito iconoclasta do modernismo brasileiro.

TEXTO PARA AS PRÓXIMAS 2 QUESTÕES:
Leia o poema de Manuel Bandeira (1886-1968) para responder à(s) questão(ões) a seguir.

Poema só para Jaime Ovalle1

Quando hoje acordei, ainda fazia escuro
(Embora a manhã já estivesse avançada).
Chovia.
Chovia uma triste chuva de resignação
Como contraste e consolo ao calor tempestuoso da noite.
Então me levantei,
Bebi o café que eu mesmo preparei,
Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei pensando...
– Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei.

(Estrela da vida inteira, 1993.)


1 Jaime Ovalle (1894-1955): compositor e instrumentista. Aproximou-se do meio intelectual carioca e se tornou amigo íntimo de Villa-Lobos, Di Cavalcanti, Sérgio Buarque de Hollanda e Manuel Bandeira. Sua música mais famosa é “Azulão”, em parceria com o poeta Manuel Bandeira. (Dicionário Cravo Albin da música popular brasileira)


3. (Unesp 2016)  Por oscilar entre duas classes de palavras, o termo “só” confere ambiguidade ao título do poema. Identifique estas duas classes de palavras e o sentido que cada uma delas confere ao título.
  
4. (Unesp 2016)  No poema, Bandeira explora uma espécie de contraste entre os tempos verbais “pretérito perfeito” e “pretérito imperfeito”. Dos pontos de vista sintático e semântico, que padrão pode ser percebido no emprego desses dois tempos verbais?

TEXTO PARA AS PRÓXIMAS 2 QUESTÕES:
Relâmpago
Cassiano Ricardo

A onça pintada saltou tronco acima que nem um
[relâmpago de rabo comprido e cabeça amarela:
Zás!
Mas uma flecha ainda mais rápida que o relâmpa-
[go fez rolar ali mesmo
aquele matinal gatão elétrico e bigodudo
que ficou estendido no chão feito um fruto de
[cor que tivesse caído de uma árvore!

In Ricardo, Cassiano. MARTIM CERERÊ, 6ª ed., São Paulo, Comp. Ed. Nacional, 1938.



5. (Unesp 1993)  Com base no poema "Relâmpago", aponte duas características da literatura modernista brasileira.
  
6. (Unesp 1993)  O livro "Martim Cererê" (1928) é um dos mais representativos da fase nacionalista, verdeamarelista, de Cassiano Ricardo. Em cada poema dessa obra encontramos, explícita ou implicitamente, a presença de temas e formas populares, bem como alusões a fatos da nacionalidade. Com base na leitura de "Relâmpago", aponte:
a) a presença implícita de um elemento básico na formação étnica brasileira;
b) dois vocábulos ou expressões que retratem o falar cotidiano brasileiro.
 
Gabarito:  


Resposta da questão 1:
 a) Fabiano representa as camadas populares, o sertanejo pobre, marginalizado e explorado. (“Era bruto, não fora ensinado. Atrevimento não tinha, conhecia o seu lugar”. “Bruto, sim senhor, mas sabia respeitar os homens”. “O amo abrandou, e Fabiano saiu de costas, o chapéu varrendo o tijolo”) Abelardo I ocupa o lugar oposto ao de Fabiano na sociedade brasileira. Ele faz parte da burguesia emergente, apresenta-se como um empresário oportunista, explorador e inescrupuloso. (“Nada disso me impressiona nem impressiona mais o público... A chave milagrosa da fortuna, uma chave Yale... Jogo com ela!”. “Ainda não tenho o número de fazendas que seu pai tinha, mas já possuo uma área cultivada maior que a que ele teve no apogeu”. “Senhora minha noiva, a concentração do capital é um fenômeno que eu apalpo com as minhas mãos. Sob a lei da concorrência, os fortes comerão sempre os fracos”).

b) Gênero dramático. A presença do diálogo e do uso da rubrica para indicar ação ou estado de espírito das personagens.  

Resposta da questão 2:
 a) Valorização de um projeto crítico e autossuficiente para a produção artística brasileira; crença na força estética e cultural do Brasil; presença do conflito entre o nacional e o estrangeiro, os valores internos e externos.

b) Uso da linguagem coloquial (“Cuidado! fortifiquem-se bem de teorias e desculpas e coisas vistas em Paris”/“Tarsila, Tarsila, volta para dentro de si mesma”). Emprego de neologismos (“parisianizaram”/ “matavirgismo”/ “matavirgista”). Produção de efeitos de humor e ironia. (“Vocês foram a Paris como burgueses. Estão épatés. E se fizeram futuristas! hi! hi! hi!”).  

Resposta da questão 3:
 O termo “só”, da forma que é empregado no título, pode ser um adjetivo ou um advérbio. Como adjetivo, pode atribuir uma qualidade ao termo “Poema”, com o significado de “único” ou “solitário”. Já como advérbio, seu significado no título é de que o poema é “apenas” para Jaime Ovalle.  

Resposta da questão 4:
 O emprego desses dois tempos verbais obedece a uma distinção entre o eu lírico e os aspectos externos. Assim, verbos no pretérito perfeito (como “acordei”, “levantei”, “bebi”, “deitei”, “acendi” e “amei”) se relacionam com o sujeito (“eu”); ao passo que os verbos no pretérito imperfeito (por exemplo, “chovia” e “fazia”) se conectam a fatores do mundo exterior.  

Resposta da questão 5:
 Versos livres e aproximação da linguagem coloquial.  

Resposta da questão 6:
 a) A presença do índio.
b) "que nem", "gatão".  


Nenhum comentário:

Postar um comentário