TEXTO
1
O
Retrato
1 Ia levando a encomenda, um par de
chinelas, se não me enganaram as
2 indiscrições tácteis. Entrei. Além da
hóspede mineira, destinatária do
3 embrulho, conversaram-me na sala a
dona da casa e sua filha. Dando-me
4 com os olhos no retrato, de mui louçã(1)
menina-e-moça, disse-me a filha
5 com orgulho:
6 É
de mamãe quando solteira.
7 Quis dizer: “a senhora era muito
bonita”. A indelicadeza do verbo no pretérito e
8 o cinismo que me faltou de colocá-lo
no presente trocaram-me qualquer frase
9 por um grunhido interjetivo.
10 Outros personagens surgiram, o dono
da casa e um sobrinho seu. O marido do
11 retrato mostrou-se logo um velhinho
espantosa e cordialmente calado. Sentia-se
12 que alguma coisa falhara em sua vida.
Não participava do nosso tempo, seu
13 mundo esvaíra-se com o declínio dos
encantos que o retrato fixou: a louçania,
14 os olhos compridos e insaciáveis.
15 O sobrinho é moço de fino trato.
Espírita. Estuda canto. Excepcionalmente
16 adiantado em ambas as coisas. Além
disso (fiquei sabendo) é aspirante à
17 fortuna vitalícia de seu avô, quase falecido.
Riram-se. Fala à hora certa,
18 escande(2) as
sílabas, adoça qualquer período, por mais inocente, com as
19 locuções condignas de fino
tratamento: se me permitem, com seu perdão, caso
20 eu não o incomode. Todo arte e manual
de civilidade, uma flor do Ocidente.
21 Sua conversa é esotérica: fluidos,
visões, mensagens. Ontem mesmo – ele o diz
22 como quem descreve os lances do
último clássico de futebol – viu
23 astros prateados descendo pelo
firmamento, senha esta pela qual seus guias
24 incorpóreos têm o hábito de
aprovar-lhe o bom comportamento neste vale
25 absurdo. Recalcitrantemente(3) terráqueo,
renuncio à possibilidade de entender
26 esse imponderável exemplar da raça
humana.
27 Na verdade, chegou a hora do almoço.
Cerrada fidalguia barra-me a porta da
28 liberdade. Passo meu lenço branco
pela testa, em sinal de rendição, e digo ao
29 povo que fico. O tenor, vidente e
herdeiro também fica. Por um momento,
30 quedamos harmonizados na equanimidade
do apetite. A velha, que é muito
31 serelepe e quase simpática, conta-me
sobre a sua vida detalhes folhetinescos.
32 Entrará (também ela) dentro de dois
meses, quatro a mais tardar, na posse de
33 uma herança ansiosamente inesperada.
Irá passar um ano na Riviera Francesa.
34 Depois quer saber se coleciono selos
(Não). Se toco violino (Não).
35 Qualquer outro instrumento (Não). Se
adoro Petrópolis (Não). Se já fui
36 operado de amídalas (Não). Que faz
você? Nada, respondo depois de
37 instantânea mas dolorosa meditação
autobiográfica. É jornalista e escritor,
38 informa com adjetivos e sorrisos a
jovem mineira. Posto o que, tive que achar
39 de uma graça incomparável “A Ceia dos
Cardeais”.
40 Passamos ao “living” azul. O tenor
cantou. A filha dançou uma hora enquanto
41 telefonava. A velhinha também quis dançar
mas estava fora de condições
42 físicas. O velho esgueirou-se como um
desertor, sem muita esperança de me ter
43 feito
entender que ele não tinha absolutamente nada com tudo aquilo.
44 E eu olhava o retrato. Olhava a velha
fumando de piteira. Olhava o retrato.
45 Olhava a velha mostrando as suas
pernas, lamentando-se que no seu tempo os
46 maiôs fossem idiotas. Depois olhava o
retrato. Olhava a velha. Olhava o retrato.
CAMPOS, Paulo Mendes.
Quadrante 2. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1963, p. 23 -25.
(1) Louçã: viçosa, bela.
(2) Escandir: destacar as sílabas, ao pronunciá-las.
(3) Recalcitrantemente: obstinadamente, teimosamente.
A tinha certeza de que o pacote que carregava continha um par
de chinelas.
B tinha apalpado o embrulho que carregava, para ver de que se
tratava.
C conversou com a filha da dona da casa, uma menina quase
moça.
D encontrou-se com a hóspede mineira, que lhe tinha enviado o
embrulho.
E permaneceu de pé, durante a conversa com
as pessoas da casa.
02 Nas linhas 3-4,
a frase “Dando-me com os olhos no retrato” significa:
A quando os olhos da moça se encontraram com os do narrador.
B olhando comigo para o retrato.
C aproximando os olhos do retrato.
D deparando comigo a olhar o retrato.
E desviando o olhar do retrato.
03 Na linha 10, lê-se: “Outros personagens surgiram, o dono da
casa e um sobrinho seu”. A
vírgula, nesse caso, poderia ser
substituída por:
A dois pontos, para anunciar uma enumeração explicativa.
B dois pontos, para anunciar uma síntese do que antes foi
exposto.
C ponto e vírgula, para anunciar a separação de dois
elementos simétricos do período.
D ponto e vírgula, para anunciar hesitação ou surpresa do
narrador.
E travessão, para isolar o vocativo.
04 No quinto parágrafo, o narrador utiliza algumas frases sem
verbo. Esse recurso é mais
freqüente:
A nas descrições.
B nas narrativas.
C nas dissertações de qualquer tipo.
D nas dissertações argumentativas.
E nos textos longos.
A corresponde a uma dedução do próprio narrador.
B provocou triste comoção nas pessoas.
C estimulou que as pessoas desejassem a morte do avô.
D provocou séria reflexão sobre a morte.
E é apresentada ao narrador como mérito
pessoal do moço.
06 Na linha 20,
a expressão “manual de civilidade”:
A indica que o sobrinho tinha habilidade manual.
B indica que o sobrinho era pessoa muito educada.
C indica que o rapaz tinha lido todo um tratado sobre
cerimonial.
D não se refere ao sobrinho, mas a um livro sobre etiqueta
social.
E refere-se ao retrato, que era uma obra de arte.
07 Pelo sentido geral do texto e, especificamente, pelo
sentido da frase, o gerúndio descendo
(L. 23) poderia ser mais adequadamente
substituído por:
A que desciam.
B que descem.
C que descerão.
D que têm descido.
E que haviam descido.
A silepse.
B antítese
C intertextualidade.
D discurso indireto livre.
E individualismo.
09 Na linha 38, ocorre a expressão posto
o que. Semelhante na forma, mas diferente no sentido, Vinícius de Moraes
usa posto que é chama, no Soneto da Fidelidade: “(...) que não seja
imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure”. Assinale a
alternativa na qual posto que tem o sentido que Vinícius lhe atribui.
A Não dormiu a noite inteira, posto que estivesse com
sono.
B Deixaram a graxa escorrer para o rio, posto que não
quisessem poluí-lo.
C Posto que
tivesse estudado bastante, obteve uma nota alta.
D Tratou mal o gerente do banco, posto que precisasse
de dinheiro.
E Posto que
não mais amasse a morena, lembrava-se dela com freqüência.
TEXTO 2
1 Como gesticulava com furor, gastando
muita energia, pôs-se a resfolegar(1) e
2 sentiu sede. Pela cara vermelha e
queimada o suor corria, tornava mais escura a
3 barba ruiva. Desceu da ribanceira,
agachou-se à beira da água salobra, pôs-se a
4 beber ruidosamente nas palmas das
mãos. Uma nuvem de arribações(2) voou
5 assustada. Fabiano levantou-se, um
brilho de indignação nos olhos.
6 Miseráveis.
8 ribanceira, atirou muitas vezes nos
ramos do mulungu(3), o chão ficou todo
9 coberto de cadáveres. Iam ser
salgados, estendidos em
cordas. Tencionou
10 aproveitá-los como alimento na viagem
próxima. Devia gastar o resto do
11 dinheiro em chumbo e pólvora, passar
um dia no bebedouro, depois largar-se
12 pelo mundo. Seria necessário
mudar-se? Apesar de saber perfeitamente que era
13 necessário,
agarrou-se a esperanças frágeis. Talvez a seca não viesse, talvez
14 chovesse. Aqueles malditos bichos é
que lhe faziam medo. Procurou esquecê-
15 los. Mas como poderia esquecê-los se
estavam ali, voando-lhe em torno da
16 cabeça, agitando-se na lama,
empoleirados nos galhos, espalhados no chão,
17 mortos? Se não fossem eles, a seca
não existiria. Pelo menos não existiria
18 naquele momento: viria depois, seria
mais curta. Assim, começava logo e
19 Fabiano sentia-a de longe. Sentia-a
como se ela já tivesse chegado,
20 experimentava adiantadamente a fome,
a sede, as fadigas imensas das retiradas.
21 Alguns dias antes estava sossegado,
preparando látegos, consertando cercas. De
22 repente, um risco no céu, outros
riscos, milhares de riscos juntos, nuvens, o
23 medonho rumor de asas a anunciar
destruição. Ele já andava meio desconfiado
24 vendo as fontes minguarem. E olhava
com desgosto a brancura das manhãs
25 longas e a vermelhidão sinistra das
tardes. Agora confirmavam-se as suspeitas.
26 - Miseráveis.
RAMOS,
Graciliano. Vidas Secas. 102a ed.
Rio de Janeiro e São Paulo: Record, 2007, p.113-114.
(1) Resfolegar : respirar com dificuldade.
(2) Arribações : aves que se deslocam em grupos, de uma região
para outra.
(3) Mulungu: arbusto de flores vermelhas.
10 O discurso indireto livre está presente
inúmeras vezes no fragmento. Exemplo disso encontra-se em:
A pôs-se a resfolegar e sentiu sede. (L. 1-2)
B Seria necessário mudar-se? (L. 12)
C o chão ficou todo coberto de cadáveres (L. 8-9)
D agarrou-se a esperanças frágeis. (L. 13)
E Procurou esquecê-los. (L. 14-15)
11 Leia este pequeno poema.
Para não
envelhecer
Joguei
fora
O
espelho.
ROGENSKI,
Tadeu. Haicais polacos. In www.radames.manosso.nom.br/haicais/030.htm.
Acesso em 15/08/2008.
Esses versos
desenvolvem uma lógica semelhante à aplicada por Fabiano. O trecho de Vidas
Secas em que essa lógica transparece é:
A iam ser salgados, estendidos em cordas. (L. 9)
B aqueles malditos bichos é que lhe faziam medo. (L. 14)
C Seria necessário mudar-se? (L. 12)
D Fabiano levantou-se, um brilho de indignação nos olhos. (L.
5)
E se não fossem eles, a seca não
existiria. (L. 17)
12 O fragmento de Vidas Secas, de Graciliano Ramos,
mostra que:
A o narrador estuda o homem, abstraindo o cenário em que este
vive.
B o vocabulário de Fabiano é rico e variado.
C os tormentos de Fabiano não são confirmados pelo ambiente.
D o narrador estuda o homem, relacionando-o com o ambiente.
E a mente de Fabiano revela-se objetiva,
sem devaneios.
GABARITO
01 B
02 D
03 A
04 A
05 E
06 B
07 A
08 C
09 C
10 B
11 E
12 D
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