domingo, 21 de maio de 2017

FGV- 2009

TEXTO 1

O Retrato

1 Ia levando a encomenda, um par de chinelas, se não me enganaram as
2 indiscrições tácteis. Entrei. Além da hóspede mineira, destinatária do
3 embrulho, conversaram-me na sala a dona da casa e sua filha. Dando-me
4 com os olhos no retrato, de mui louçã(1) menina-e-moça, disse-me a filha
5 com orgulho:
6 É de mamãe quando solteira.
7 Quis dizer: “a senhora era muito bonita”. A indelicadeza do verbo no pretérito e
8 o cinismo que me faltou de colocá-lo no presente trocaram-me qualquer frase
9 por um grunhido interjetivo.
10 Outros personagens surgiram, o dono da casa e um sobrinho seu. O marido do
11 retrato mostrou-se logo um velhinho espantosa e cordialmente calado. Sentia-se
12 que alguma coisa falhara em sua vida. Não participava do nosso tempo, seu
13 mundo esvaíra-se com o declínio dos encantos que o retrato fixou: a louçania,
14 os olhos compridos e insaciáveis.
15 O sobrinho é moço de fino trato. Espírita. Estuda canto. Excepcionalmente
16 adiantado em ambas as coisas. Além disso (fiquei sabendo) é aspirante à
17 fortuna vitalícia de seu avô, quase falecido. Riram-se. Fala à hora certa,
18 escande(2) as sílabas, adoça qualquer período, por mais inocente, com as
19 locuções condignas de fino tratamento: se me permitem, com seu perdão, caso
20 eu não o incomode. Todo arte e manual de civilidade, uma flor do Ocidente.
21 Sua conversa é esotérica: fluidos, visões, mensagens. Ontem mesmo – ele o diz
22 como quem descreve os lances do último clássico de futebol – viu
23 astros prateados descendo pelo firmamento, senha esta pela qual seus guias
24 incorpóreos têm o hábito de aprovar-lhe o bom comportamento neste vale
25 absurdo. Recalcitrantemente(3) terráqueo, renuncio à possibilidade de entender
26 esse imponderável exemplar da raça humana.
27 Na verdade, chegou a hora do almoço. Cerrada fidalguia barra-me a porta da
28 liberdade. Passo meu lenço branco pela testa, em sinal de rendição, e digo ao
29 povo que fico. O tenor, vidente e herdeiro também fica. Por um momento,
30 quedamos harmonizados na equanimidade do apetite. A velha, que é muito
31 serelepe e quase simpática, conta-me sobre a sua vida detalhes folhetinescos.
32 Entrará (também ela) dentro de dois meses, quatro a mais tardar, na posse de
33 uma herança ansiosamente inesperada. Irá passar um ano na Riviera Francesa.
34 Depois quer saber se coleciono selos (Não). Se toco violino (Não).
35 Qualquer outro instrumento (Não). Se adoro Petrópolis (Não). Se já fui
36 operado de amídalas (Não). Que faz você? Nada, respondo depois de
37 instantânea mas dolorosa meditação autobiográfica. É jornalista e escritor,
38 informa com adjetivos e sorrisos a jovem mineira. Posto o que, tive que achar
39 de uma graça incomparável “A Ceia dos Cardeais”.
40 Passamos ao “living” azul. O tenor cantou. A filha dançou uma hora enquanto
41 telefonava. A velhinha também quis dançar mas estava fora de condições
42 físicas. O velho esgueirou-se como um desertor, sem muita esperança de me ter
43 feito entender que ele não tinha absolutamente nada com tudo aquilo.
44 E eu olhava o retrato. Olhava a velha fumando de piteira. Olhava o retrato.
45 Olhava a velha mostrando as suas pernas, lamentando-se que no seu tempo os
46 maiôs fossem idiotas. Depois olhava o retrato. Olhava a velha. Olhava o retrato.

                       CAMPOS, Paulo Mendes. Quadrante 2. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1963, p. 23 -25.

(1) Louçã: viçosa, bela.
(2) Escandir: destacar as sílabas, ao pronunciá-las.
(3) Recalcitrantemente: obstinadamente, teimosamente.
01 A leitura do primeiro parágrafo nos informa que o narrador:

A tinha certeza de que o pacote que carregava continha um par de chinelas.
B tinha apalpado o embrulho que carregava, para ver de que se tratava.
C conversou com a filha da dona da casa, uma menina quase moça.
D encontrou-se com a hóspede mineira, que lhe tinha enviado o embrulho.
E permaneceu de pé, durante a conversa com as pessoas da casa.

02 Nas linhas 3-4, a frase “Dando-me com os olhos no retrato” significa:

A quando os olhos da moça se encontraram com os do narrador.
B olhando comigo para o retrato.
C aproximando os olhos do retrato.
D deparando comigo a olhar o retrato.
E desviando o olhar do retrato.

03 Na linha 10, lê-se: “Outros personagens surgiram, o dono da casa e um sobrinho seu”. A
vírgula, nesse caso, poderia ser substituída por:

A dois pontos, para anunciar uma enumeração explicativa.
B dois pontos, para anunciar uma síntese do que antes foi exposto.
C ponto e vírgula, para anunciar a separação de dois elementos simétricos do período.
D ponto e vírgula, para anunciar hesitação ou surpresa do narrador.
E travessão, para isolar o vocativo.

04 No quinto parágrafo, o narrador utiliza algumas frases sem verbo. Esse recurso é mais
freqüente:

A nas descrições.
B nas narrativas.
C nas dissertações de qualquer tipo.
D nas dissertações argumentativas.
E nos textos longos.

05 A informação de que o sobrinho poderia receber uma herança (L. 16-17):
A corresponde a uma dedução do próprio narrador.
B provocou triste comoção nas pessoas.
C estimulou que as pessoas desejassem a morte do avô.
D provocou séria reflexão sobre a morte.
E é apresentada ao narrador como mérito pessoal do moço.

06 Na linha 20, a expressão “manual de civilidade”:
A indica que o sobrinho tinha habilidade manual.
B indica que o sobrinho era pessoa muito educada.
C indica que o rapaz tinha lido todo um tratado sobre cerimonial.
D não se refere ao sobrinho, mas a um livro sobre etiqueta social.
E refere-se ao retrato, que era uma obra de arte.

07 Pelo sentido geral do texto e, especificamente, pelo sentido da frase, o gerúndio descendo
(L. 23) poderia ser mais adequadamente substituído por:

A que desciam.
B que descem.
C que descerão.
D que têm descido.
E que haviam descido.

08 A frase “digo ao povo que fico” (L. 28-29) é exemplo de:
A silepse.
B antítese
C intertextualidade.
D discurso indireto livre.
E individualismo.

09 Na linha 38, ocorre a expressão posto o que. Semelhante na forma, mas diferente no sentido, Vinícius de Moraes usa posto que é chama, no Soneto da Fidelidade: “(...) que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure”. Assinale a alternativa na qual posto que tem o sentido que Vinícius lhe atribui.

A Não dormiu a noite inteira, posto que estivesse com sono.
B Deixaram a graxa escorrer para o rio, posto que não quisessem poluí-lo.
C Posto que tivesse estudado bastante, obteve uma nota alta.
D Tratou mal o gerente do banco, posto que precisasse de dinheiro.
E Posto que não mais amasse a morena, lembrava-se dela com freqüência.

TEXTO 2

1 Como gesticulava com furor, gastando muita energia, pôs-se a resfolegar(1) e
2 sentiu sede. Pela cara vermelha e queimada o suor corria, tornava mais escura a
3 barba ruiva. Desceu da ribanceira, agachou-se à beira da água salobra, pôs-se a
4 beber ruidosamente nas palmas das mãos. Uma nuvem de arribações(2) voou
5 assustada. Fabiano levantou-se, um brilho de indignação nos olhos.
6 Miseráveis.
7 A cólera dele se voltava de novo contra as aves. Tornou a sentar-se na
8 ribanceira, atirou muitas vezes nos ramos do mulungu(3), o chão ficou todo
9 coberto de cadáveres. Iam ser salgados, estendidos em cordas. Tencionou
10 aproveitá-los como alimento na viagem próxima. Devia gastar o resto do
11 dinheiro em chumbo e pólvora, passar um dia no bebedouro, depois largar-se
12 pelo mundo. Seria necessário mudar-se? Apesar de saber perfeitamente que era
13 necessário, agarrou-se a esperanças frágeis. Talvez a seca não viesse, talvez
14 chovesse. Aqueles malditos bichos é que lhe faziam medo. Procurou esquecê-
15 los. Mas como poderia esquecê-los se estavam ali, voando-lhe em torno da
16 cabeça, agitando-se na lama, empoleirados nos galhos, espalhados no chão,
17 mortos? Se não fossem eles, a seca não existiria. Pelo menos não existiria
18 naquele momento: viria depois, seria mais curta. Assim, começava logo  e
19 Fabiano sentia-a de longe. Sentia-a como se ela já tivesse chegado,
20 experimentava adiantadamente a fome, a sede, as fadigas imensas das retiradas.
21 Alguns dias antes estava sossegado, preparando látegos, consertando cercas. De
22 repente, um risco no céu, outros riscos, milhares de riscos juntos, nuvens, o
23 medonho rumor de asas a anunciar destruição. Ele já andava meio desconfiado
24 vendo as fontes minguarem. E olhava com desgosto a brancura das manhãs
25 longas e a vermelhidão sinistra das tardes. Agora confirmavam-se as suspeitas.
26 - Miseráveis.

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 102a ed. Rio de Janeiro e São Paulo: Record, 2007, p.113-114.


(1) Resfolegar : respirar com dificuldade.
(2) Arribações : aves que se deslocam em grupos, de uma região para outra.
(3) Mulungu: arbusto de flores vermelhas.

10 O discurso indireto livre está presente inúmeras vezes no fragmento. Exemplo disso encontra-se em:
A pôs-se a resfolegar e sentiu sede. (L. 1-2)
B Seria necessário mudar-se? (L. 12)
C o chão ficou todo coberto de cadáveres (L. 8-9)
D agarrou-se a esperanças frágeis. (L. 13)
E Procurou esquecê-los. (L. 14-15)

11 Leia este pequeno poema.

Para não envelhecer
Joguei fora
O espelho.

ROGENSKI, Tadeu. Haicais polacos. In www.radames.manosso.nom.br/haicais/030.htm. Acesso em 15/08/2008.

Esses versos desenvolvem uma lógica semelhante à aplicada por Fabiano. O trecho de Vidas Secas em que essa lógica transparece é:

A iam ser salgados, estendidos em cordas. (L. 9)
B aqueles malditos bichos é que lhe faziam medo. (L. 14)
C Seria necessário mudar-se? (L. 12)
D Fabiano levantou-se, um brilho de indignação nos olhos. (L. 5)
E se não fossem eles, a seca não existiria. (L. 17)

12 O fragmento de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, mostra que:

A o narrador estuda o homem, abstraindo o cenário em que este vive.
B o vocabulário de Fabiano é rico e variado.
C os tormentos de Fabiano não são confirmados pelo ambiente.
D o narrador estuda o homem, relacionando-o com o ambiente.
E a mente de Fabiano revela-se objetiva, sem devaneios.

GABARITO

01         B
02         D
03         A
04         A
05         E
06         B
07         A
08         C
09         C
10         B
11         E

12         D

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