quinta-feira, 1 de junho de 2017

UFRJ- 2008- com gabarito

Aprendi a aprender com filmes

(DUARTE, Rosália. Cinema & educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.)

TEXTO I

Como se comportar no cinema (A arte de namorar)
(Vinicius de Moraes)

Poucas atividades humanas são mais agradáveis que o ato de namorar, e é sobre a arte de praticá-lo dentro dos cinemas que queremos fazer esta crônica. Porque constitui uma arte fazê-lo bem no interior de recintos cobertos, mormente quando se dispõe da vantagem de ambiente escuro propício. A tendência geral do homem é abusar das facilidades que lhe são dadas, e nada mais errado; pois a verdade é que namorando em público, além dos limites, perturba ele aos seus circunstantes, podendo atrair sobre si a curiosidade, a inveja e mesmo a ira daqueles que vão ao cinema sozinhos e pagam pelo direito de assistir ao filme em paz de espírito.
Ora, o namoro é sabidamente uma atividade que se executa melhor a coberto da curiosidade alheia. Se todos os freqüentadores dos cinemas fossem casais de namorados, o problema não existiria, nem esta crônica, pois a discrição de todos
com relação a todos estaria na proporção direta da entrega de cada um ao seu namoro específico. [...]
De modo que, uma das coisas que os namorados não deveriam fazer é se enlaçar por sobre o ombro e juntar as cabeças. Isso atrapalha demais o campo visual dos que estão à retaguarda. [...]
Cochichar, então, é uma grande falta de educação entre namorados no cinema. Nada perturba mais que o cochicho constante e, embora eu saiba que isso é pedir muito dos namorados, é necessário que se contenham nesse ponto, porque afinal de contas aquilo não é casa deles. Um homem pode fazer milhões de coisas – massagem no braço da namorada, cosquinha no seu joelho, festinha no rostinho delazinha; enfim, a grande maioria do trabalho de “mudanças” em automóveis não hidramáticos – sem se fazer notar e, conseqüentemente, perturbar aos outros a fruição do filme na tela. Porque uma coisa é certa: entre o namoro na tela – e pode ser até Clark Gable versus Ava Gardner – e o namoro no cinema, este é que é o real e positivo, o perturbador, o autêntico.
1 - O texto de Vinicius de Moraes, sobre a “arte de namorar” no cinema, levanta uma hipótese que anularia a existência da crônica. Transcreva exclusivamente a oração subordinada adverbial que traduz a referida hipótese.

2 - O sufixo (z)inho, empregado repetidamente na passagem “festinha no rostinho delazinha”, é de enorme vitalidade
na língua. Comprove essa vitalidade, no plano morfológico, a partir do uso do diminutivo nos vocábulos da referida passagem.

3 - Porque constitui uma arte fazê-lo bem no interior de recintos cobertos, mormente quando se dispõe da vantagem de ambiente escuro propício.

Substitua o vocábulo em destaque – pouco usual na língua falada – por outro que preserve o sentido do termo e a estrutura da frase.

TEXTO II

Desde sempre
(Vinicius de Moraes)

Na minha frente, no cinema escuro e silencioso
Eu vejo as imagens musicalmente rítmicas
Narrando a beleza suave de um drama de amor.
Atrás de mim, no cinema escuro e silencioso
Ouço vozes surdas, viciadas
Vivendo a miséria de uma comédia de carne.
Cada beijo longo e casto do drama
Corresponde a cada beijo ruidoso e sensual da comédia
Minha alma recolhe a carícia de um
E a minha carne a brutalidade do outro.
Eu me angustio.
Desespera-me não me perder da comédia ridícula e falsa
Para me integrar definitivamente no drama.
Sinto a minha carne curiosa prendendo-me às palavras implorantes
Que ambos se trocam na agitação do sexo
Tento fugir para a imagem pura e melodiosa
Mas ouço terrivelmente tudo
Sem poder tapar os ouvidos.
Num impulso fujo, vou para longe do casal impudico
Para somente poder ver a imagem.
Mas é tarde. Olho o drama sem mais penetrar-lhe a beleza
Minha imaginação cria o fim da comédia que é sempre o mesmo fim
E me penetra a alma uma tristeza infinita
Como se para mim tudo tivesse morrido.

4 - Autores e obras de um determinado período podem apresentar – nos níveis da forma ou do conteúdo – padrões estéticos e ideológicos caracterizadores de um outro momento histórico. Partindo de tal afirmação, pode-se dizer que o texto II, embora escrito por um poeta do século XX, apresenta um conflito tipicamente barroco.

Descreva esse conflito com base em elementos extraídos do texto.

TEXTO III

         Flagra
(Rita Lee & Roberto de Carvalho)

No escurinho do cinema
Chupando drops de aniz
Longe de qualquer problema
Perto de um final feliz
Se a Deborah Kerr que o Gregory Peck
Não vou bancar o santinho
Minha garota é Mae West
Eu sou o Sheik Valentino
Mas de repente o filme pifou
E a turma toda logo vaiou
Acenderam as luzes, cruzes!
Que flagra!
Que flagra!
Que flagra!

5 - No texto III, a pronúncia dos nomes de atores célebres do cinema americano no 5º verso leva a um criativo efeito cômico.

a) Explique esse efeito, valendo-se de elementos fônicos e morfossintáticos.

b) Identifique, no plano vocabular, a relação semântica entre o 5º e o 6º versos.


TEXTO IV

Happy end
   (Cacaso)
O meu amor e eu
nascemos um para o outro
agora só falta quem nos apresente

6 - O texto “Happy end” – cujo título (“final feliz”) faz uso de um lugar-comum dos filmes de amor – constrói-se na relação entre desejo e realidade, e pode ser considerado uma paródia de certo imaginário romântico.

Justifique a afirmativa, levando em conta elementos textuais.

TEXTO V

Adeus, meus sonhos!
                                            (Álvares de Azevedo)

Adeus, meus sonhos, eu pranteio e morro!
Não levo da existência uma saudade!
E tanta vida que meu peito enchia
Morreu na minha triste mocidade!

Misérrimo! votei meus pobres dias
À sina doida de um amor sem fruto,
E minh’alma na treva agora dorme
Como um olhar que a morte envolve em luto.

Que me resta, meu Deus? morra comigo
A estrela de meus cândidos amores,
Já que não levo no meu peito morto
Um punhado sequer de murchas flores!


7 - O poema de Álvares de Azevedo (texto V), assim como o de Cacaso (texto IV), trabalha com o par desejo/realidade. Com base nessa afirmação, demonstre, a partir de elementos textuais, que “Adeus, meus sonhos!” constitui forte ilustração da poética da segunda geração romântica, à qual pertence o autor.

TEXTO VI

O ex-cineclubista
(João Gilberto Noll)

Aquele homem meio estrábico, ostentando um mau humor maior do que realmente poderia dedicar a quem lhe cruzasse o caminho e que agora entrava no cinema, numa segunda-feira à tarde, para assistir a um filme nem tão esperado, a não ser entre pingados amantes de cinematografias de cantões os mais exóticos, aquele homem, sim, sentou-se na sala de espera e chorou, simplesmente isso: chorou. Vieram lhe trazer um copo d´água logo afastado, alguém sentou-se ao lado e lhe perguntou se não passava bem, mas ele nada disse, rosnou, passou as narinas pela manga, levantou-se num ímpeto e assistiu ao melhor filme em muitos meses, só isso. Ao sair do cinema, chovia. Ficou sob a marquise, à espera da estiagem. Tão absorto no filme que se esqueceu de si. E não soube mais voltar.

8 - O vocábulo ex-cineclubista resulta da aplicação de quatro processos de formação de palavras. Identifique-os, valendo-se de elementos constitutivos desse vocábulo.

9 - O texto VI procura reproduzir na escrita uma característica da linguagem cinematográfica: “o filme, sob ponto de vista formal, pode ser considerado como uma seqüência de espaços e tempos concretamente apresentados pela imagem.” (Enciclopédia Mirador-Internacional, s.v. cinema – 13.1.1).

Justifique a afirmativa, tomando por base a organização do plano sintático do texto.

TEXTO

 VII CINEMA
                  (Carlos Drummond de Andrade)

De tanto freqüentarem cinema, as pessoas acabam acreditando mais na tela do que na vida que levam.

10 - Relacione o desfecho do Texto VI, expresso na frase “E não soube mais voltar”, ao aforismo de Carlos Drummond de Andrade (Texto VII).

Referências bibliográficas:
Textos I e II - MORAES, Vinicius de. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004.
Texto IV - CACASO. Lero-lero (1967 - 1985). Rio de Janeiro: 7 Letras; São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
Texto V - AZEVEDO, Álvares de. Poesias Completas. Campinas: UNICAMP; São Paulo: Imprensa Oficial, 2002.
Texto VI - NOLL, João Gilberto. Mínimos múltiplos comuns. São Paulo: Francis, 2003.
Texto VII - ANDRADE, Carlos Drummond de. O Avesso das coisas - Aforismos”. In: Prosa Seleta - Carlos Drummond de Andrade. Rio de


                        GABARITO

QUESTÃO 1
A oração que traduz a referida hipótese é a seguinte:
Se todos os freqüentadores dos cinemas fossem casais de namorados.

QUESTÃO 2
A vitalidade do sufixo (z)inho no plano morfológico fica comprovada por sua aplicação não só a bases nominais (substantivos e adjetivos), como em festa e em rosto, mas também a outras bases menos usuais, como, por exemplo, a pronomes, como em (d)ela.

QUESTÃO 3
O vocábulo mormente pode ser substituído por principalmente, sobretudo, maiormente.
QUESTÃO 4
No espaço físico da sala de cinema, o eu-lírico mostra-se dividido entre a beleza suave de um drama de amor, que repercute em sua alma, e a miséria de uma comédia de carne, que apela para seus desejos carnais: minha alma recolhe a carícia de um / e a minha carne a brutalidade do outro. Desse modo, o poema apresenta um conflito tipicamente barroco: carne/corpo versus espírito/alma, construído em diversas passagens do texto.

QUESTÃO 5
a) O efeito cômico é dado pela possibilidade de Kerr e Peck poderem ser associados, pela semelhança sonora, a quer e peque, o que resulta na alteração de classe gramatical – de substantivo (próprio) a verbo – e, conseqüentemente, de função sintática.

b) Os vocábulos peque e santinho passam a integrar o mesmo campo semântico, ao estabelecer uma relação de contraste entre pecado e santidade.

QUESTÃO 6
O título do poema de Cacaso e seus dois primeiros versos remetem a um amor predestinado, idealizado. O desejo de realização desse amor, entretanto, é desmontado pelo terceiro verso, que traz a contingência da realidade. Essa ironia destrutiva é característica do discurso paródico.

QUESTÃO 7
No poema de Álvares de Azevedo, o sonho de uma concretização amorosa desfaz-se diante de uma realidade que frustra o desejo do eu-lírico: adeus meus sonhos, eu pranteio e morro!. Esse quadro se configura numa atmosfera típica da segunda geração romântica: mórbida e melancólica.

QUESTÃO 8
O vocábulo ex-cineclubista resulta da aplicação de quatro processos de formação de palavras: redução/abreviação vocabular (cine ← cinema), composição (cine + clube), derivação sufixal (cineclube + ista) e derivação prefixal (ex + cineclubista).

QUESTÃO 9
A seqüência de espaços e tempos – antes e depois de assistir ao filme, dentro (1o e 2° períodos) e fora do cinema (do 3° ao 5° período) – manifesta-se na predominância de estruturas coordenadas, justapostas, sempre no passado, numa seqüência rápida de ações (rosnou, passou as narinas pelas mangas, levantou-se, assistiu ao filme), e com rupturas (aquele homem meio estrábico [...], aquele homem, sim, [...]). Esses elementos sintáticos são alguns dos recursos que procuram reproduzir, na escrita, a linguagem cinematográfica.

QUESTÃO 10

O desfecho do texto VI confirma o aforismo de Drummond (texto VII). A afirmativa de que o personagem, tendo já saído do cinema, não soube mais voltar indica que ele está tão absorto na realidade ficcional que não consegue retornar a sua própria realidade.

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